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“Nem
tudo que se vê,
se enxerga.
Vemos com os olhos
de olhar.
E devemos ver
com os olhos
Do
coração.”
Faz dois anos que ele morreu. Hoje não ouço mais nada. Apenas o som que entra pelo ouvido e invade minha mente fazendo parecer em mim, que ele ainda está aqui. Atrás de mim. Junto. Há quem diga que isso é uma espécie de Deus ou outra coisa parecida. Ou até, a gente mesmo se escutando. Dizem também que quando converso com si próprio é com "ele" que a gente fala. Eu só sei que a falta que sinto é tão grande que até hoje não aprendi a me cuidar sozinho.
Saio caminhando pela rua, numa praça ou numa esquina qualquer, e ainda me sinto inseguro, como se as pessoas me vissem e logo quisessem se aproveitar de mim.
Era começo da noite. Eu sei pelo forte cheiro de poluição que tem na cidade na hora do rush. O tumulto, gente pra todo o lado. As ruas fedem, barulho, buzinas, motores que aumentam a rotação e dizem: Anda logo imbecil, o semáforo já está verde há dois segundos! E na próxima quadra, esse mesmo motor pára em fila dupla pra pegar sua esposa saindo do trabalho.
E assim o ciclo continua.
Todos os dias.
Tudo bem.
Trânsito é uma coisa singular.
Não existe nada no mundo que se pareça com ele.
As pessoas mudam.
A personalidade muda.
O tempo do trânsito é diferente.
O tempo muda.
Tempo.
Quanto tempo se perde no trânsito? Mas quanto se ganha com ele? O que se ganha com ele? Hora do rush é sinônimo de maior quantidade de idiotas por metro quadrado! Todos loucos, correndo pra suas casas como baratas numa explosão atômica. Eu que não dirijo, nem deveria perder tempo com o trânsito. Sou um pedestre consciente do meu dever e do meu lugar no trânsito, sempre que possível. Na calçada, dois tampões de ferro, provavelmente de manutenção de gás ou saneamento, são o meu sinal: Vindo da Alameda Cabral, pego a direita no segundo tampão.
Sete passos à frente.
Uma porta.
Duas barras de ferro na horizontal. A da esquerda nunca abre, exceto em dia de mudança de condômino. Azar dos canhotos.
Corrimão,
Três passos,
Três degraus,
Cinco passos e aquele som.
O Filho da puta só faz pra me irritar! Chupa resto de comida dos dentes e puxa catarro toda vez que entro no prédio. Não acredito que seja só coincidência! Já tive a oportunidade de reparar. Quando não estamos sozinhos ele não faz.
—Boa noite, Sr. Duarte. O senhor quer alguma ajuda com os pacotes e sacolas? Respondi calado.
— Fingido!
—Boa noite. Não obrigado, como todo cego arrogante, lhe direi que consigo me virar sozinho. Respondi em tom de brincadeira.
Terminados os cinco passos.
O elevador.
Botão de cima e a espera. Ouço vozes vindas de dentro do poço do elevador. Provavelmente duas mulheres, conversando sobre novela, ajeitando batom e calcinha.
Ouço risos.
A porta abre.
— Boa noite vizinho, diz uma delas com ar de quem se recompõe ao sair do banheiro. Respondi às duas e fui entrando no elevador. A porta nem havia fechado totalmente, pois nenhuma porta de elevador fecha totalmente!
É verdade! Primeiro ela vem com velocidade parecendo que vai lacrar a gente dentro daquela joça, depois fica naquela enrolação, um milímetro por minuto. Mas dessa vez achei bom que ela fechou devagar e nem puxei a porta com as unhas como de costume, pois senti que minhas vizinhas repararam alguma coisa em mim que eu não havia notado, e fiquei então ouvindo. Mas o elevador começou a subir antes que eu pudesse compreender alguma frase completa e antes mesmo de apertar o botão do meu andar.
Alarme de emergência.
Luz.
Trava-porta.
Primeira coluna da esquerda, quinto botão.
12°andar.
Apertei logo, antes que parasse em algum outro andar.
*
Enquanto decido qual chave irá me livrar da agonia de entrar em casa, penso por um momento que vou ouví-lo novamente. Sinto um calafrio horrível partindo da espinha e no momento em que encontro a chave principal, desfaleço no chão a chorar, por me lembrar da morte terrível do meu companheiro. Largo as sacolas no chão e ouço minha feira toda descendo escada abaixo.
—Como posso ser tão infeliz! Não me basta ter ficado cego, ainda perco minha única companhia e o meu amparo? Quando foi que eu disse que queria grandes coisas da vida? Nunca fui exigente em relação ao luxo. Sempre quis uma vida simples, apenas com um pouco de conforto! Deus é mesmo um sacana! Sim! Acabou com a minha vida duas vezes! Primeiro uma cegueira sem explicação, e agora, Ronald some da minha vida, assim, tragicamente. E para sempre.
*
Álvaro Duarte é um empresário do ramo de hotelaria. Tinha vários hotéis de classe média, espalhados por todo o estado. Levava uma vida relativamente saudável, era separado da mulher, mas convivia bem com ela e suas duas filhas. Era quase um sujeito normal, não fosse por sofrer de uma doença que causava fortes dores de cabeça antes de entrar em uma espécie de transe que para ele era apenas como se tivesse dormido e para os médicos como se tivesse morrido e ressuscitado. Os médicos desconheciam seu problema, mas sabiam que quando Álvaro entrava nesse transe seu corpo parava de responder por completo durante algum tempo.
Silvia, sua filha mais nova, agora com vinte e um anos mora e estuda em Bangladesh desde o começo do ano. Suelen, a mais velha, é uma conceituada arquiteta e mora em Curitiba, com Marta sua ex-mulher.
*
Entre correspondências e algumas faturas de lojas, Álvaro recebe uma carta que chama atenção pelo corpo da mensagem que diz: Laboratório de medicina cerebral. — resultado de exame. —Mas que coisa é essa agora? Não fiz exame nenhum pra receber um resultado com o meu nome?!
Coincidência ou não, o fato é que o remetente era desconhecido e o resultado do exame assim como o envelope estava todo escrito em braile, apenas com o número escrito a caneta: apartamento 1206. Álvaro abre o envelope e vê que o exame era mesmo dele, solicitado há algumas semanas atrás. No exame dizia que Álvaro além de ter que entrar em contato com seu médico em Nova - Iorque urgentemente, também deveria em hipótese alguma entrar em contato com outras pessoas que não fosse seu médico e seu advogado.
— Mas que porra é essa, agora? Não peço exame nenhum, e ainda não posso falar com ninguém além de meu médico que não conheço e meu advogado que eu não tenho?
*
Três anos e um mês...antes.
Capa de jornal:
“Assalto ocorrido na agência do Bradesco,
no bairro Jardim das Américas em Curitiba,
mata uma pessoa e deixam outras duas feridas.”
O dia estava nublado, mas não abafado. Ventava mas não fazia frio, estava a típica cena de final da primavera Curitibana. Mas ainda podia se notar nas copas das árvores de Ipê-roxo, que a primavera desse ano havia sido intensa. Caminhava com Silvia ao lado, ouvindo-a falar sobre o que ela pensava (ou não) sobre o seu futuro e de como ela achava difícil conviver com uma irmã mais velha, diariamente.
― Realmente, irmãs mulheres, com diferenças na idade é foda de lidar.
―Silvia, foda não.
―Enquanto minha irmã já está pensando, na carreira, no modo de se vestir adequadamente, num namorado que não queira apenas apresentar o mastro da bandeira...
―Silvia, mastro da bandeira? ―mastro da bandeira não.
...achando que todo dia é dia da pátria. Eu quero é curtir Rock n’ Roll!
―Humm... Quanto tempo você ainda agüenta curtir Rock n’ Roll na sua vida, Silvia?
―Acho que não preciso me preocupar com isso agora, primeiro porque não preciso decidir agora, o que vou fazer na vida, e segundo eu sei que essa hora vai chegar, então lá eu penso. Por enquanto, quero andar com as minhas próprias pernas, sem ter a Suelen sendo a minha sombra o tempo todo. Sair com as minhas amigas da escola e fazer as coisas que eu gosto.
―Querida, veja assim: acho que você poderia começar a pensar com calma, sem pressão, o que você quer da sua vida, mas só para o ano que vem ok? No ano que vem você vai fazer vestibular e aí precisará ter alguma coisa em mente. Sobre a sua irmã, acho que é muito adequado vocês duas começarem a se entender, pois logo ela sairá de casa, e você vai sentir muito a falta dela. Então aproveitem para tornar o convívio entre vocês duas, melhor e mais saudável. Mas sendo assim, ande com suas próprias pernas comigo até aquela cafeteria que vamos tomar um café.
*
Os dormentes, que serviam de parede e decoração de um bar “tipo Chalé” na esquina assoviavam ao passar do vento entre eles, enquanto na calçada um copo plástico dançava uma “Makarena” engraçada e imaginária. Uma velha do outro lado da rua tentava sem sucesso corrigir o penteado, deixando os longos cabelos brancos, esvoaçando, parecendo uma crina de cavalo de corrida. Quase no fim da rua, que dava para a rotatória, um ônibus pára e desembarca três passageiros que saem aos berros xingando o motorista, que deve ter passado direto pelo ponto de ônibus anterior, pois elas apontavam pra trás do ônibus, gritavam e apontavam pro chão, apontavam pra trás do ônibus, gritavam e apontavam pro chão. Seqüencial e incansavelmente.
“Suponho pela energia dos gritos, e pela visível intimidade com os parentes próximos do motorista acho que eles conheciam sua mãe”. O motorista, de onde eu o via, movimentava o corpo num mix entre um daqueles cachorrinhos com o pescoço de mola, e o boneco do posto. Acho mesmo é que ele não parava de rir.
Eram três e quinze da tarde,
Ainda faltavam vinte e cinco minutos para as quatro da tarde, Álvaro e Silvia saem da cafeteria Vitória que fica na rotatória da rua Cel. H. dos Santos e desemboca na trincheira da BR- 116 quando Silvia nota no relógio, que estava quase na hora do banco fechar e diz...
— Papai, tenho que pagar um carnê, será que você poderia ir comigo ao banco, que está quase na hora dele fechar?
— É claro, minha querida, vamos sim.
Silvia entra na fila do caixa 03, enquanto seu pai procura um bebedouro. O segurança da porta reclama ao colega do ar-condicionado da agência. Uma adolescente se irrita ao ser barrada pela porta-giratória, depois de tirar tudo de dentro de sua bolsa. O segurança e a adolescente discutem com o gerente ao chegarem a possível conclusão de que o problema era o “piercing” da menina.
A menina constrangida com o alarme sonoro da porta que não parava de tocar faz com que o gerente libere a porta lateral, fechada à chave. A discussão foi se tornando mais intensa e criando certo alvoroço dentro do banco, até que num momento de desatenção do segurança, dois homens entram na agência dando voz de assalto. No mesmo instante, a adolescente faz um escândalo atraindo a atenção de todos à sua volta, tirando da meia-calça uma pistola, pondo os seguranças deitados no chão. Um dos homens faz de refém o gerente, enquanto o outro pula por cima do caixa depois de fazer todos na fila deitarem no chão. Inclusive Silvia. Álvaro, que procurava um bebedouro se desvencilhou, por acaso da cena, e teve uma das piores sensações de sua vida, ao ver sua filha deitada no chão com dezenas de pessoas em volta com as mãos sobre a cabeça.
A sensação de impotência lhe bateu no peito, como um trovão vindo da terra e atravessando seu corpo, saindo pela boca. Apesar de estático, analisou o que ocorria em detalhes. Principalmente pelo fato de estar um pouco à distância, e nem ter precisado se deitar no cão. Ficou de cócoras, quase disfarçado de caipira enrolando fumo na roça. Para evitar que algum dos gatunos lhe notasse, baixava a cabeça em sinal de consentimento, toda vez que alguém olhava. O seguranças, indignados com a maneira da quadrilha agir na agência “pela inexperiência dos contraventores, que discutem como loucos entre gritos e indecisões “, tentam entre eles se comunicarem pra pedir reforço policial. A menina tremendo de nervosismo arrisca ameaçar dar um tiro em que tentasse algo.
Um dos ladrões, pega o dinheiro dos quatro caixas abertos e ordena que sejam abertos os outros dois, que não tinham funcionários. O gerente diz que ali não havia nenhum dinheiro, sendo que não tinha mais ninguém trabalhando naquele horário. Irritado, o ladrão que o rendia, dá-lhe um soco com o cotovelo mandando-o abrir o caixa assim mesmo. O ladrão, que já tinha tirado todo o dinheiro dos caixas, vem em direção ao gerente ameaçando matar alguém se ele não abrisse os caixas restantes. Dá um tiro para o alto, e pega Silvia pelos cabelos, obrigando-a a se levantar repentinamente. Todas as pessoas que estavam deitadas no chão se assustam com o tiro e então começa uma gritaria mesclada com resmungos. De pé, e muito assustada, Silvia dá uma olhada de soslaio na situação para ver se encontra seu pai! O ladrão carrega Silvia pelos cabelos, puxando-os para trás fazendo com que ela se obrigasse a olhar pra cima. Como Silvia tinha estatura bem mais baixa que o rapaz, se entorta pra se livrar dele. Mas antes que se livrasse o homem a joga no chão ao lado dos seguranças. Quando Silvia cai no chão, ela aparece no ângulo de visão de seu pai, que estava mais afastado. Quando Álvaro a vê, de impulso mais do que de necessidade, grita seu nome. No mesmo segundo, de impulso mais do que de necessidade, um dos ladrões aponta a arma em direção ao grito e dispara atingindo de raspão Álvaro na cabeça.
Nessa troca de funções, entre um vir dos caixas com o dinheiro, e o outro levar a socos e coronhadas o gerente para abrir os caixas, um dos seguranças, toma a clássica e idiota decisão de tentar dominar a situação. Levanta abruptamente e grita à menina que large a arma, já apontando em direção a ela. O assaltante que havia acabado de disparar, vira-se para o segurança e lhe dá dois tiros no peito.
E os três saem pela porta lateral, antes fechada à chave.
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